terça-feira, 22 de junho de 2010

Entre os tantos

Ouvi dizer que literatura implica em embaraço.

Janaína, nome modificado.
Idade: 27 anos.
Interesses: projeto de vida.

Janaína anuncia ao telefone: "estou com o maior problema da minha vida". Não entendi, temi por ela. "Venha até o meu escritório, Jana." Naquela época eu havia começado uma sociedade em uma casa simpática e acolhedora no Alto da XV em Curitiba.

Ela chegou pouco depois da hora do almoço. Era verão, lembro das cores pálidas do seu vestido quase infantil. Braços nus e bronzeados, blush cor de pêssego, cílios alongados, fones pendurados no decote bem recheado, Janaína não aparentava carregar um grande problema. "Draminha nosso de cada dia, amiga?" "Calma, já conto." Calorosa, carinhosa, cumprimentou meu sócio com beijo, depois abraço, percebi de soslaio o deslumbre dele com o frescor daquela moça desocupada.

Ofereci chá gelado, ela se afogou, tossiu, se recompôs e disse com o olhar ansioso: "Que lindinha tua sala!" "Jana, tô preocupada, diz aí." Em um outro semblante, ela se aproxima e fala baixinho: "Guria, fodeu. Estou grávida de 8 semanas, farei o aborto na quarta (era segunda-feira), e meu ex-namorado pretende me denunciar ainda hoje." Ela retira da bolsa de pano cor-de-rosa uma cartela com 4 comprimidos hexagonais, que diz se tratar do cytotec. Conseguira com um sacoleiro do Paraguai. Estava determinada com ato, mas intimidada com a ameaça de denúncia.

"Ele era bom no sexo, e eu vacilei."

Orientei-a como advogada. Suspirei e sofri como amiga. O ex-namorado não cumpriria a ameaça, ao menos nunca tive notícia de qualquer delegacia.

Na quarta-feira liguei. Maribel estava a postos e me descreveu as condições de Jana: pressão baixa, frio, vômitos, diarréia. "Relaxa, ela diz estar bem e que na internet era isso mesmo que relatavam." Duas horas depois liguei de novo: dores, contrações, cólicas infernais, e agora muito calor. Já havia sangrado. "Ela anda de um lado pro outro, e faz força para descer." Guria forte.

"Dor de parto", Jana ao telefone.
"Buscopan composto, guria", tento ajudar.
"De jeito nenhum, anti-espasmódico anula o efeito."

Ela havia se informado, e eu estava aliviada por isso.

Maribel fala e eu visualizo: de cócoras, vestida apenas por um par de lágrimas, Janaína nos recorda nossa condição inalienável de fêmea em dor. "Já passa, já passa", dizemos nós para nós mesmas. É o nosso consenso.

Na quinta-feira dirigi 120 km em um calor de 40 graus. O litoral paranaense é uma contradição: selvagem, assimétrico, de águas turvas e ondas branquíssimas, mar de solidões, ele não me comove, nem me convoca.

Com uma bata amarela até os joelhos, Jana sorri, me beija e me agradece. "Mas, por quê?" "Por ter se importado, por não ter me julgado." É o pacto da amizade amoral, lembra? E em seguida, sem pudores, Jana me descreve seu horror e alívio com "o embrião branco com um filete desenhado no meio, devia ser a espinha dele..." Acho terrivelmente poético.

"Eu resolvi o maior problema da minha vida." Fomos até o mar, descalças com as mãos dadas. Maribel e eu prometemos segredo. Jana ressalva: "não, coloca no seu blog, muda meu nome, é melhor que saibam assim." Depois que prescrever, Jana. Só depois.

***

Obs.: Aos vocacionados à delação, promotoria e aos demais paladinos do Bem, do Belo, da Virtude e do Justo, aviso: isso é uma tentativa de literatura. Ridículo explicar, mas é preciso.

6 comentários:

gabrieldivan disse...

"Namorado" denunciar? Que porra?

Apenas esse fato (BEM literal - nao literario em se tratando de algumas BESTAS) mostra que sim, seria preciso a EXPLICACAO do "obs." no fim do post

Victor disse...

Me sinto totalmente invasor de comentar em um post assim. Mas é que me impactou. E creio que, se foi publicado, é justo para que o relato seja recebido pelo visitante. E, sendo recebido com impacto, que esse impacto reverbere até nos comentários. Só peço "com licença" porque isso convém e atenua a minha invasão de "desconhecido".

A descrição foi precisa e crua, como cabe, pois revela algo sobre a condição feminina que espanta e fascina os homens: a "condição inalienável de fêmea em dor". É perturbador reconhecer que há uma comunhão feminina com a "carne" do mundo, com o gozo e a dor do mundo, que é totalmente alheia ao homem. Isso está em seus corpos, esse contínuo ato de comungar com necessário da condição humana, mesmo quando esse necessário é de uma injustiça cortante. Enquanto nós, homens, com facilidade nos alienamos de nosso próprios corpos, de nossa realidade humana, para nos apegarmos ao abstrato, aos julgamentos e, até mesmo, por mais ridículo que seja, à lei. Somos pobres, de algum modo, e essa pobreza só é iluminada, em certos momentos, por texto como esse.

(ao visualizar o que escrevi no comentário antes de publicar, vi que justo o Gabriel comentou. qual é meu, tá me perseguindo?) ;-)

Aline disse...

Obrigada pelo belíssimo comentário, Victor.

Fico contente e satisfeita de ter provocado essa sua intrigante reflexão sobre a condição masculina e a feminina. Já valeu a pena. Pois, Victor, aguardo em mim mesma alguma elocubração mais apurada para sua resposta. Ela virá, merecerá um post e os devidos créditos pela iniciativa.

E ao Gabriel, meu comentarista quase sempre exclusivo, também o meu constante e sincero 'muito obrigada'. Hoje você está em ótima companhia nessa caixinha.

Abraços, meninos!

Aline.

marie. disse...

gostei muito!

Anjo Mau disse...

A sua poesia é detalhista. Inspirada, sem dúvida, e com uma escrita literária. O grande problema é que o excesso de detalhes em tudo que você escreve, dá uma aparência de superficialidade e falta de conteúdo. Procure escrever usando mais seus sentimentos, os temas que lhe virão mais interessantes. E depois, dê um tom mais taciturno e misterioso à sua redação, e de preferência, com um final marcante, que faça o leitor não ter a sensação de que perdeu tempo.

Aline disse...

Obrigada mesmo. Apareça sempre, pra perder tempo.

:)